Paulo VI e Dom Lefebvre: uma audiência decisiva na crise da Igreja

Introdução
Em 11 de setembro de 1976, em Castel Gandolfo, realizou-se uma audiência histórica entre o Papa Paulo VI e o Arcebispo Marcel Lefebvre, francês, que se tornaria o principal expoente da resistência às reformas do Concílio Vaticano II.
A conversa foi transcrita pelo Cardeal Giovanni Benelli. Foi publicada por Andre Tornielli, no Vatican Insider, em 16/05/2018. Foi traduzida por André Langer e repercutida pelo Instituto Humanitas Unisinos, em seu site, em 17/05/2018.
A transcrição revela o choque direto entre duas visões: de um lado, a exigência de adesão plena ao Concílio; de outro, a defesa intransigente da Tradição da Igreja. Trata-se de um documento raro, que nos permite “ouvir”, quase em primeira pessoa, o diálogo entre a autoridade papal e a consciência de um bispo fiel ao que a Igreja sempre ensinou e praticou.
Transcrição integral da audiência (com grifos)
PAULO VI: Espero estar na presença de um irmão, um filho, um amigo. Infelizmente, a posição que você tomou é a de um antipapa. O que devo dizer? Ela não permitiu nenhuma medida em suas palavras, em seus atos, em seu comportamento. Você não se negou a vir até mim. E eu ficaria feliz em poder resolver um caso tão doloroso. Eu vou ouvi-lo; e vou convidá-lo para refletir. Eu sei que sou um homem pobre. Mas aqui não é a pessoa que está em jogo: é o Papa. E você julgou o Papa como infiel à Fé da qual é o supremo guardião. Talvez esta seja a primeira vez na história que isso acontece. Você disse ao mundo inteiro que o Papa não tem fé, que ele não crê, que ele é modernista e coisas do tipo. Eu devo, sim, ser humilde. Mas você está numa posição terrível. Você realiza atos, perante o mundo, de extrema gravidade.
MARCEL LEFEBVRE: Não era minha intenção atacar a pessoa do Papa. Talvez tenha havido algo pouco apropriado nas minhas palavras, nos meus escritos. Não estou sozinho, e tenho comigo alguns bispos, sacerdotes e muitos fiéis. A situação na Igreja depois do Concílio é tal que já não sabemos o que fazer. Com todas essas mudanças, ou corremos o risco de perder a fé ou dar a impressão de desobedecer. Eu gostaria de ficar de joelhos e aceitar tudo; mas não posso ir contra a minha consciência. Não fui eu que criei um movimento, mas os fiéis que não aceitam esta situação. Eu não sou o líder dos tradicionalistas… Eu me comporto exatamente como me comportava antes do Concílio. Não consigo entender como, de repente, sou condenado porque formo sacerdotes na obediência da santa tradição da santa Igreja.
PAULO VI: Não é verdade. Você foi informado verbalmente e por escrito muitas vezes que estava errado e por que estava errado. Você nunca quis ouvir. Mas continue com a sua exposição.
MARCEL LEFEBVRE: Muitos sacerdotes e muitos fiéis pensam que é difícil aceitar as tendências que foram feitas no dia seguinte ao Concílio Ecumênico Vaticano II, sobre a liturgia, sobre a liberdade religiosa, sobre a formação dos sacerdotes, sobre as relações da Igreja com os Estados católicos, sobre as relações da Igreja com os protestantes. E, repito, não sou eu quem pensa isso. Há muitas pessoas que pensam dessa maneira. Pessoas que se apegam a mim e me empurram, muitas vezes contra a minha vontade, para não abandoná-las… Em Lille, por exemplo, não fui eu quem quis aquela manifestação.
PAULO VI: Mas, o que está dizendo?
MARCEL LEFEBVRE: Não sou eu. É a televisão.
PAULO VI: Mas a televisão transmitiu o que você disse. Foi você quem falou, e de maneira muito dura, contra o Papa.
MARCEL LEFEBVRE: Você sabe, muitas vezes os jornalistas te obrigam a falar… E eu tenho o direito de me defender. Os cardeais que me julgaram em Roma me caluniaram: e acho que tenho o direito de dizer que são calúnias… Não sei mais o que fazer. Tento formar sacerdotes de acordo com a fé e na fé. Quando vejo os outros Seminários, sofro terrivelmente: situações inimagináveis. E depois: os religiosos que usam o hábito são condenados ou desprezados pelos bispos: os que são apreciados são aqueles que vivem uma vida secularizada, aqueles que se comportam como gente do mundo.
PAULO VI: Mas nós não aprovamos esses comportamentos. Todos os dias trabalhamos com grande esforço e com igual tenacidade para eliminar determinados abusos, não conformes com a lei vigente da Igreja, que é a do Concílio e da Tradição. Se você tivesse se esforçado para ver, compreender o que eu faço e digo todos os dias para garantir a fidelidade da Igreja ao ontem e à correspondência com o hoje e o amanhã, não teria chegado a esse doloroso ponto em que se encontra. Somos os primeiros a deplorar os excessos. Somos os primeiros e os mais preocupados em encontrar um remédio. Mas esse remédio não se pode encontrar em um desafio à autoridade da Igreja. Escrevi isso repetidas vezes. Você não levou em conta as minhas palavras.
MARCEL LEFEBVRE: Quero falar sobre a liberdade religiosa, porque o que se lê no documento conciliar vai contra o que disseram seus Predecessores.
PAULO VI: Não são argumentos que se discutem durante uma audiência, mas garanto que tomo nota da sua perplexidade: é sua atitude contra o Concílio.
MARCEL LEFEBVRE: Não sou contra o Concílio, mas apenas contra alguns de seus textos.
PAULO VI: Se não é contra o Concílio, deve aderir a ele, a todos os seus documentos.
MARCEL LEFEBVRE: Temos de escolher entre o que disse o Concílio e o que disseram os seus Predecessores. Não seria possível prescrever que os bispos aprovem, nas igrejas, uma capela na qual as pessoas possam rezar como antes do Concílio? Agora se permite tudo a todos: por que não permitir algo também a nós?
PAULO VI: Somos uma comunidade. Não podemos permitir autonomias de comportamento às diferentes partes.
MARCEL LEFEBVRE: O Concílio admite a pluralidade. Pedimos que tal princípio também se aplique a nós. Se Sua Santidade o fizesse, tudo se resolveria. Haveria um aumento das vocações. Os aspirantes ao sacerdócio querem ser formados na verdadeira piedade. Sua Santidade tem a solução do problema nas mãos. Estou disposto para que alguém da Congregação para os Religiosos faça a vigilância no meu seminário, e estou pronto para parar de dar conferências e permanecer no seu seminário, sem sair.
PAULO VI: O Bispo Nestor Adam, de Sião, veio para falar comigo em nome da Conferência Episcopal da Suíça, para me dizer que não podia mais tolerar sua atividade. O que devo fazer? Procure voltar à ordem. Como pode considerar-se em comunhão conosco, quando toma posições contra a Igreja?
MARCEL LEFEBVRE: Nunca foi minha intenção.
PAULO VI: Você disse e escreveu isso. Que eu seria um Papa modernista. Aplicando um Concílio Ecumênico, eu teria traído a Igreja. Você compreenderá que, se fosse assim, eu teria que renunciar; e convidar você para ocupar o meu lugar para dirigir a Igreja.
MARCEL LEFEBVRE: A crise da Igreja existe.
PAULO VI: Sofremos profundamente por isso. Você contribuiu para piorá-la com sua solene desobediência, com seu desafio aberto contra o Papa.
MARCEL LEFEBVRE: Não sou julgado como deveria.
PAULO VI: O Direito Canônico o julga. Você já se deu conta do escândalo e dos danos que causou na Igreja? Você está ciente disso? Gostaria de apresentar-se assim diante de Deus? Faça um diagnóstico da situação, um exame de consciência e depois se pergunte, diante de Deus: o que devo fazer?
MARCEL LEFEBVRE: Parece-me que abrindo um pouco o leque de possibilidades para fazer hoje o que se fazia no passado, tudo se ajustaria. Essa seria a solução imediata. Como disse, não sou o líder de nenhum movimento. Estou pronto para ficar trancado para sempre no meu seminário. As pessoas entram em contato com meus sacerdotes e sai edificada. São jovens que têm o sentido da Igreja: são respeitados na rua, no metrô, em todos os lugares. Os outros sacerdotes não usam mais o hábito talar, não confessam mais, não rezam mais. E o povo escolheu: esses são os sacerdotes que queremos. o Senhor está a par de que há pelo menos 14 cânones que são usados na França para a oração eucarística?
PAULO VI: Não apenas 14, mas centenas. Há abusos; mas é grande o bem que o Concílio trouxe. Não quero justificar tudo; como disse, estou tentando corrigir onde for necessário. Mas é um dever, ao mesmo tempo, reconhecer que há sinais, graças ao Concílio, de vigorosa recuperação espiritual entre os jovens, um aumento do senso de responsabilidade entre os fiéis, os sacerdotes e os bispos.
MARCEL LEFEBVRE: Não digo que tudo seja negativo. Eu gostaria de colaborar na construção da Igreja.
PAULO VI: Mas não é assim, claro, que você contribui para a edificação da Igreja. Você está consciente do que está fazendo? Está consciente de que está indo diretamente contra a Igreja, contra o Papa, contra o Concílio Ecumênico? Como pode se adjudicar o direito de julgar um Concílio? Um Concílio, depois de tudo, cujas atas, em grande parte, foram assinadas também por você. Rezemos e reflitamos, subordinando tudo a Cristo e sua Igreja. Eu também vou refletir. Aceito com humildade suas censuras. Eu estou no final da minha vida. Sua severidade é para mim uma ocasião de reflexão. Vou consultar também os dicastérios, como, por exemplo, a S.C. para os Bispos, etc. Tenho certeza de que você também refletirá. Você sabe que o estimo, que reconheci os seus méritos, que concordamos, no Concílio, sobre muitos problemas.
MARCEL LEFEBVRE: É verdade.
PAULO VI: Você entenderá que não posso permitir, inclusive por razões que eu chamaria de ‘pessoais’, que você se torne culpado de um cisma. Faça uma declaração pública, com a qual retira suas recentes declarações e recentes comportamentos, dos quais todos têm notícia como atos não para edificar a Igreja, mas para dividi-la e prejudicá-la. Desde que você se encontrou com os três cardeais romanos, houve uma ruptura. Precisamos encontrar novamente a união na oração e na reflexão. Agora, convido-o a recitar comigo o Pater Noster, a Ave-Maria e o Veni Sancte Spiritus.
Conclusão
O encontro terminou sem reconciliação: Paulo VI insistiu na obediência irrestrita ao Concílio, enquanto Dom Lefebvre permaneceu fiel à Tradição. A audiência revela, de forma clara e até dramática, a encruzilhada do pós-Concílio: obedecer às novidades em nome da unidade institucional, ou conservar a fé de sempre em nome da fidelidade a Cristo.
A leitura deste diálogo não é apenas uma volta ao passado. É um convite a refletir sobre o presente: como ser católico hoje sem perder de vista a Tradição imutável?
A história mostra que a verdadeira unidade da Igreja nunca pode ser construída à margem da verdade da fé.