O Católico e as Artes Marciais: Prática, Espetáculo e Representação

Juliano de Henrique Mello By Juliano de Henrique Mello 28 de setembro de 2025

Introdução

Entre os cristãos, é frequente a dúvida: pode um católico praticar artes marciais? É permitido assistir a competições ou filmes de luta?

A moral tradicional da Igreja, apoiada nos Padres, nos concílios e nos catecismos, oferece critérios seguros para discernir o que é lícito e o que deve ser evitado.

1. A prática das artes marciais

“O treinamento corporal é proveitoso”, disse São Paulo (1Tm 4,8). Neste sentido, a prática de artes marciais, quando ordenada à disciplina, à saúde e ao desenvolvimento das virtudes, é legítima e até louvável, pois:

  • Favorece o autocontrole, a temperança e a fortaleza;
  • Educa o corpo em benefício da alma;
  • Pode ser vista como forma de recreio moderado, aquilo que Santo Tomás de Aquino chama de eutrapelia.

Assim, modalidades como judô, karatê, jiu-jitsu, tae-kwon-do, aikidô e até mesmo o boxe e a esgrima são compatíveis com a vida cristã, desde que praticadas com espírito de respeito e disciplina.

2. O problema dos espetáculos de violência

O que a Tradição condena não é o treino em si, mas o espetáculo fundado na agressão real. “O quinto Mandamento – não matar – proíbe-nos […] o duelo, […] os ferimentos [e] as pancadas”, sendo que “a Igreja estabeleceu a excomunhão contra os duelantes e contra todo aquele que assiste voluntariamente ao duelo”. [1]

Desde os primeiros séculos, a Igreja se manifestou contra a diversão com sangue. Santo Agostinho, por exemplo, relata como seu amigo Alípio, inicialmente resistente, acabou fascinado pela violência dos gladiadores:

“Foi atingido na alma por um golpe mais forte do que o recebido no corpo pelo gladiador (…), saboreou no mesmo instante a violência e não mais desviou o olhar, ébrio de sangrenta volúpia”. [2]

Também, São João Crisóstomo, no Sermão Contra os Espetáculos, censura os cristãos que frequentavam arenas e teatros:

“Alguns houve que, abandonando-nos, foram ao espetáculo de corridas de cavalo e se entregaram ao delírio das ovações, enchendo a cidade com gritos, berros e risadas. Isto é para chorar!”. [3]

Nas Homilias ao Evangelho de Mateus, o mesmo insiste na advertência, qualificando os espetáculos profanos como “oficina do diabo”, e denunciando seus efeitos corruptores sobre a alma, em contraste com a vida de oração e de culto a Deus. [4] Não à toa, o Concílio de Arles (314) proibiu a comunhão àqueles que participassem de combates sangrentos. [5]

O princípio é constante: não se deve transformar o sofrimento humano em espetáculo.

3. Boxe e MMA

Ainda que possuam regras e árbitros, o boxe e o MMA conservam como essência o ato de golpear o adversário até anulá-lo.

  • A estrutura do show é a pancadaria;
  • A plateia vibra com a agressão;
  • Há riscos graves, como traumatismos e doenças neurológicas.

Portanto, treinar boxe pode até ser aceitável, em termos de prática esportiva para fins de disciplina pessoal. Mas assistir a lutas de boxe ou MMA, quando se busca o deleite da violência, é moralmente reprovável.

4. Judô, karatê e jiu-jitsu esportivos

Nessas modalidades, a lógica é diferente. O judô busca projeções e imobilizações, e não ferimentos graves. O karatê de competição pontua golpes controlados, e o jiu-jitsu esportivo termina no “tap-out”, evitando lesões.

Ou seja, a ênfase está na técnica e na disciplina, não no machucar, de modo que tanto o treino quanto a assistência a competições de judô, karatê e jiu-jitsu são lícitos, desde que a intenção do espectador seja apreciar a habilidade, e não desejar a agressão.

5. O juízo moral sobre assistir

A moral cristã considera não apenas o ato externo, mas também a disposição interior, pelo que podemos gradar conforme segue

  • Assistir por estudo técnico (atletas, treinadores, médicos): lícito.
  • Assistir por curiosidade ocasional: pode ser venial.
  • Assistir por gosto da pancadaria (ver “quem bate mais”, ou “quem é mais forte”, ou “quem é mais valente”): pecado grave, porque há prazer no sofrimento alheio.

6. Filmes de luta

Nos filmes, a violência é encenada, não real, de modo que o critério moral passa a ser o conteúdo da obra. Se esta exalta virtudes, como a coragem, a perseverança e a disciplina, o lazer é aceitável. Mas se promove o ódio, ou a vingança, ou a brutalidade gratuita, é reprovável.

Um exemplo conhecido é o do filme Rocky, o qual, embora tenha uma longa cena de luta, utiliza-a como pano de fundo para a exaltação de virtudes como o esforço, a humildade e a superação, sem ter as agressões como fim em si mesmas.

Conclusão

À luz da Tradição da Igreja:

  • É plenamente legítima a prática das artes marciais, desde que ordenada ao cultivo das virtudes e ao cuidado do corpo;
  • Também é lícito acompanhar competições em que prevaleçam a técnica e a disciplina, como no judô, no karatê e no jiu-jitsu, nas quais não se busca a lesão do adversário, mas a destreza e o respeito mútuo.

Diferente disso é o caso do boxe e do MMA, cujos espetáculos se fundamentam no prazer da pancadaria e na expectativa de ver o outro ser anulado. Nestes casos, assistir por mero entretenimento é moralmente reprovável e pode constituir pecado grave quando há complacência na violência.

Quanto ao cinema, a representação de lutas não é em si ilícita, desde que esteja a serviço de valores nobres, como a coragem e a perseverança, e não da exaltação do ódio ou da brutalidade gratuita.

Portanto, o católico pode servir-se das artes marciais como disciplina, mas deve rejeitar todo tipo de espetáculo que transforme a violência real em diversão.


Notas de rodapé

[1] Catecismo de São Pio X ilustrado e comentado / São Pio X. – Rio de Janeiro : Ed. CDB, 2023, pp. 182-4.

[2] Santo Agostinho, nas Confissões, Livro VI, cap. 8.

[3] São João Crisóstomo, no sermão Contra os Espetáculos, in Patrologia Graeca, 56, col. 264-270.

[4] MOSCHEN, Agnes Soares. A Formação da Identidade Cristã no Império Romano: os ataques de João Crisóstomo aos espetáculos teatrais em Antioquia. NEARCO: Revista Eletrônica de Antiguidade, Rio de Janeiro, Volume XI, Número I, pp. 9-22, 2019, acessado por último em 28 de setembro de 2025, às 19:19.

[5] Cf. a obra Concilia Galliae a.314-a.506, de C. Munier, publicada em 1963, em Turnhout, pela editora Brepols, citada no artigo The Canons From The Council Of Arles (A.D. 314), publicado pelo site Fourth Century Christianity, acessado por último em 28 de setembro de 2025, às 19:29.

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