Introdução
A Igreja Católica, sob os pontificados de Pio VI a Pio XII, resistiu heroicamente às forças da secularização, do modernismo e das ideologias revolucionárias. Essa resistência era caracterizada por condenações firmes contra os erros doutrinários e por uma clara defesa da Tradição.
No entanto, o pontificado de João XXIII trouxe um ponto de virada significativo, marcando o início de uma abordagem diferente que culminaria na crise pós-conciliar.
1. Quem era Angelo Roncalli
João XXIII, nascido Angelo Roncalli, protagonizou diversas ações e declarações que suscitaram acusações severas de heresia e escândalo.
1.1. Suspeita de Modernismo e Ligações com Hereges
Já em 1925, Roncalli foi acusado de modernismo, sendo removido de sua posição no Seminário de Latrão, por manter estreita relação com o padre excomungado Ernesto Buonaiuti, conhecido por suas posições heréticas.
1.2. Relativismo Religioso e Falsas Unidades
Diversas declarações de Roncalli indicam uma visão ecumênica que dilui as fronteiras doutrinárias da Igreja. Por exemplo, ele afirmou que a “família cristã” ainda não havia atingido a “unidade visível na verdade”, o que implica uma negação da unidade perfeita e visível da Igreja Católica.
A Igreja, por outro lado, desde sempre, sustentou que apenas ela representa a plena unidade na fé.
Essa posição ecumênica foi manifestada em seu apoio à união com cismáticos e protestantes, sem exigir sua conversão ao catolicismo.
Nesta toada, numa carta de 1926, Roncalli sugeriu que católicos e ortodoxos cismáticos compartilham a mesma fé, ignorando as divisões doutrinais essenciais que separam as duas tradições.
“Os católicos e os ortodoxos não são inimigos, mas irmãos. Temos a mesma fé […]. Separam-nos alguns mal-entendidos sobre a constituição divina da Igreja de Jesus Cristo. Aqueles que causaram esses mal-entendidos já morreram há séculos. Vamos deixar de lado as velhas contendas e, cada um no seu campo, vamos trabalhar para tornar bons os nossos irmãos, oferecendo-lhes os nossos melhores exemplos. Mais tarde, ainda que tendo partido de caminhos diferentes, encontrar-nos-emos na união das Igrejas para formar juntos a verdadeira e única Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo.”
Também:
Em 1935, Angelo Roncalli viajou à Turquia e fez amizade com o Sub-Secretário do Ministério de Relações Exteriores, Namam Rifat Menemengioglu. Menemengioglu disse a Roncalli: “A laicidade do Estado é o nosso princípio fundamental e a garantia de nossa liberdade.” Roncalli respondeu: “A Igreja será cuidadosa em não infringir vossa liberdade.” ( Alden Hatch, A Man Named John, NY, NY: Hawthorn Books Inc., 1963, pág. 94.)
2. O Contexto da Eleição de João XXIII
João XXIII foi eleito em 1958, num período em que a Igreja vivia sob a expectativa de continuidade da resistência às ameaças modernistas.
Considerado inicialmente um papa de transição, ele surpreendeu ao adotar uma postura pastoral distinta. Enquanto o mundo ocidental avançava em sua secularização, dentro da Igreja havia uma tensão entre os defensores da Tradição e aqueles que buscavam uma maior adaptação ao espírito moderno.
3. A Convocação do Concílio Vaticano II
Logo no início de seu pontificado, João XXIII anunciou a convocação de um concílio ecumênico, o Vaticano II, com o objetivo de “atualizar” a Igreja (“aggiornamento”).
Essa proposta foi recebida com entusiasmo por alguns, mas com preocupação por outros, que temiam uma ruptura com a Tradição.
Os tradicionalistas estavam certos, uma vez que os sinais de ruptura começaram a surgir:
- Abertura ao mundo moderno: João XXIII buscava um diálogo com o mundo, mas isso às custas de abolir a postura combativa da Igreja contra seus erros.
- Mudança de foco: O Concílio foi concebido mais como um evento pastoral do que doutrinal, desprovido das condenações claras que marcaram pontificados anteriores.
4. Pontos de Ruptura no Pontificado de João XXIII
João XXIII adotou uma visão otimista sobre o futuro da Igreja, desconsiderando os perigos que seus predecessores haviam apontado. Ele declarou uma expectativa de uma “nova primavera” da Igreja, mas sua abordagem trouxe consequências significativas:
- Menor ênfase nas condenações: Enquanto pontífices anteriores alertavam contra erros como o modernismo, João XXIII optou por um tom conciliador.
- Abertura à infiltração de ideias modernistas: Essa postura permitiu que setores progressistas da Igreja ganhassem força nos preparativos do Concílio Vaticano II.
- Desorientação entre os fiéis: A ausência de condenações claras gerou confusão e enfraqueceu a autoridade doutrinal tradicional.
4.1. Alterações Litúrgicas e Supressão de Santos
João XXIII desempenhou um papel importante nas reformas litúrgicas que precederam o Concílio Vaticano II. As Orações Leoninas, incluindo a oração a São Miguel Arcanjo, foram estabelecidas por Leão XIII em 1884 para serem recitadas após a Missa Tridentina. Embora não tenham sido formalmente abolidas por João XXIII permitiu que fossem estabelecidos trabalhos de revisão litúrgica durante seu pontificado, os quais, após sua morte, resultaram que orações como essa fossem gradualmente deixadas de lado, especialmente à medida que a estrutura litúrgica da Missa começava a ser modificada.
Quanto ao “Último Evangelho”, tradicionalmente recitado ao final da Missa Tridentina, também foi alvo de processo de reforma litúrgica iniciado no pontificado de João XXIII, e que culminaria, após sua morte, com sua exclusão na Missa de Paulo VI, introduzida em 1969.
Portanto, as ações e omissões de João XXIII abriram o caminho para revisões (e revoluções) na liturgia, incluindo a remoção de ações sagradas.
Além disso, ele removeu do calendário litúrgico os Quatorze Santos Auxiliares e Santa Filomena, uma santa amplamente venerada e canonizada pelo Papa Gregório XVI.
4.2. Relações com Maçons e Comunistas
João XXIII foi acusado de manter relações suspeitas com maçons e comunistas, figuras que a Igreja condenou repetidamente. Ele teria nomeado Yves Marsaudon, um maçom de grau 33, como Cavaleiro de Malta, e manteve boas relações com figuras comunistas, como Aleksei Adzhubei, genro do primeiro-ministro comunista soviético Nikita Khrushchev.
Além disso, sua encíclica Pacem in Terris foi amplamente elogiada por líderes comunistas e maçons, sendo descrita por alguns como uma “exposição de doutrina maçônica”.
4.3. Declarações Sobre Outras Religiões
João XXIII adotou uma postura de abertura em relação a outras religiões, incluindo o Islã e o Judaísmo. Ele reformulou a bênção pontifícia ao proferi-la frente o Xá do Irã, para evitar a menção à Santíssima Trindade, e, em relação aos judeus, afirmou que eles ainda eram o “povo eleito”, contrariando o ensinamento tradicional da Igreja de que, após a vinda de Cristo, os judeus que rejeitaram o Evangelho perderam essa designação.
4.4. Pacem in Terris e Liberdade Religiosa
A encíclica Pacem in Terris afirma que o homem tem o direito de professar publicamente qualquer religião de acordo com sua consciência. Esse princípio foi condenado por papas anteriores, como Gregório XVI e Pio IX, que defenderam que o erro não tem direitos e que a liberdade religiosa não é um direito divino, especialmente quando se trata de religiões falsas.
4.5. Relações com os Judeus e a Revisão de Textos Litúrgicos
João XXIII foi o primeiro papa a remover a expressão “pérfidos judeus” das orações da Sexta-feira Santa, numa tentativa de acomodar sensibilidades modernas em detrimento da verdade doutrinal.
Ele também recebeu elogios de figuras judaicas por sua postura conciliadora, que incluía declarações de arrependimento por supostos erros cometidos pela Igreja em relação aos judeus.
5. Análise Crítica
Ao comparar o pontificado de João XXIII com o de seus predecessores, percebemos uma ruptura clara:
- De Pio VI a Pio XII: Uma postura de resistência e condenação firme contra as ameaças doutrinárias.
- João XXIII: Um abandono parcial dessa postura, em favor de uma visão pastoral que relativizou a gravidade de certos problemas.
Essa mudança teve impactos profundos:
- Na doutrina: A relativização de algumas verdades imutáveis gerou confusão teológica.
- Na liturgia: A abertura a mudanças litúrgicas deu início a uma crise que seria amplamente sentida nos anos seguintes.
- Na disciplina: A desordem se instaurou em muitos setores da Igreja, com o enfraquecimento da identidade católica.
As ações e declarações de João XXIII provocaram intensas críticas, sendo acusado de heresia e de traição à fé católica tradicional. Sua abertura ao diálogo ecumênico, alterações litúrgicas, e postura de diálogo com maçons e comunistas são indícios dum afastamento perigoso dos ensinamentos imutáveis da Igreja.
Assim, João XXIII foi não apenas um inovador, mas um papa que deu início à “apostasia” consolidada pelo Concílio Vaticano II.
6. Reflexão Teológica
O pontificado de João XXIII representa um teste de fidelidade para a Igreja. A liderança papal, ao mudar seu tom e abordagem, impactou profundamente a vida eclesial e a clareza doutrinal.
Para os fiéis, isso significou a necessidade de discernir entre as novidades propostas e a fidelidade à Tradição.
O abandono da postura combativa contra o erro gerou um ambiente de ambiguidade, no qual muitos fiéis e clérigos se afastaram da pureza da fé transmitida pelos séculos.
Conclusão
O pontificado de João XXIII marca o ponto de virada na crise da Igreja. A transição de uma postura firme e combativa para uma abordagem pastoral e conciliadora abriu caminho para as mudanças e desorientações que caracterizariam a era pós-conciliar.
Este momento convida os católicos a refletirem sobre a importância da fidelidade à Tradição e a aprenderem com os erros do passado para reconstruir a Igreja em tempos de crise. Que a coragem e a clareza doutrinal dos papas anteriores inspirem um retorno àquilo que a Igreja sempre foi chamada a ser: a fiel guardiã da fé.
Bibliografia
Catecismo católico da crise na Igreja, Pe. Matthias Gaudron / tradução de Leonardo Calabrese. – Niterói, RJ: Permanência, 2011.
Alden Hatch. A Man Named John. Nova York: Hawthorn Books Inc., 1963.
Voltaire. Tratado sobre a Tolerância. 1763.
Rousseau, Jean-Jacques. O Contrato Social. 1762.
São Pio X. Catecismo de São Pio X ilustrado e comentado. Rio de Janeiro: Ed. CDB, 2023.
Gregório XVI. Mirari Vos. 1832.
Pio IX. Syllabus Errorum. 1864.
Pio X. Pascendi Dominici Gregis. 1907.
Leão XIII. Humanum Genus. 1884.
João XXIII. Pacem in Terris. 1963.